quarta-feira, 19 de julho de 2017

Entre nós...

"‘Entre nós’, explicava-me [Sartre] utilizando o vocabulário que lhe era caro, ‘trata-se de um amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes’. Éramos de uma mesma espécie e nossa compreensão duraria tanto quanto nós mesmos, mas ela não podia suprir as riquezas efêmeras dos encontros com seres diferentes; como consentiríamos deliberadamente em ignorar a gama dos espantos, das saudades, dos remorsos, dos prazeres que éramos também capazes de sentir? Refletimos longamente sobre isso durante nossos passeios. Uma tarde, com os Nizan, fôramos ver, no Champs-Élysées, Tempestade sobre a Ásia e, depois de os termos deixado, descêramos a pé até os jardins do Carrousel. Sentamos num banco de pedra ao lado de uma das alas do Louvre. Como encosto havia uma balaustrada separada do muro por um espaço estreito: nessa gaiola, um gato miava; como se metera ali dentro? E era grande demais para sair. A noite caía e uma mulher aproximou-se com um saco de papel nas mãos: tirou de dentro restos de comida e os deu ao gato, acariciando-o com ternura. Foi nesse momento que Sartre propôs: ‘Façamos um contrato de dois anos.’ Eu podia arranjar-me em Paris durante esses dois anos e viveríamos na intimidade mais estreita possível. Depois, ele me aconselhava a solicitar, eu também, uma situação no estrangeiro. Ficaríamos separados dois ou três anos e voltaríamos a nos encontrar em algum lugar do mundo, em Atenas, por exemplo, para retomar durante um tempo mais ou menos longo uma vida mais ou menos em comum. Nunca seríamos estranhos um ao outro, nunca um de nós apelaria ao outro em vão, e nada prevaleceria sobre essa aliança; mas era preciso que não degenerasse em constrangimento, em hábito; devíamos preservá-la por todos os meios desse apodrecimento. Aquiesci. A separação que Sartre encarava não deixava de me assustar, mas esboçava-se ao longe, e eu adotara como regra não me preocupar com problemas antecipados; contudo, à medida que o medo me assaltava, eu o encarava como uma fraqueza e esforçava-me por diminui-lo; o que me ajudava é que já comprovara a solidez das palavras de Sartre. Com ele, um projeto não era conversa fiada, e sim um momento de realidade. Se me dissesse um dia: ‘Encontro-a daqui a vinte e dois meses, exatamente às dezessete horas, na Acrópole’, poderia estar certa de que o encontraria na Acrópole às dezessete horas exatamente vinte e dois meses depois. De um modo mais geral, sabia que nenhuma desgraça vinda da parte dele me ocorreria, a não ser que morresse antes de mim.



Quanto às liberdades que nos tínhamos teoricamente concedido, não se tratava em absoluto de usá-las durante o período do ‘contrato’; entendíamos entregar-nos sem reticência e sem partilha à novidade de nossa história. Fizemos outro pacto: não somente nenhum de nós nunca mentiria ao outro, como também não lhe esconderia nada.

(…)




Enfim, nenhuma máxima atemporal impõe a todos os casais uma perfeita translucidez: cabe aos interessados decidirem que gênero de acordo desejam atingir; não têm nem direitos nem deveres a priori. Na minha adolescência, eu afirmava o contrário: inclinava-me demasiado a pensar que o que valia para mim valia para todos.

Hoje, em compensação, irrito-me quando terceiros aprovam ou censuram as relações que estabelecemos, sem levar em conta a particularidade que as explica ou justifica: esses sinais gêmeos em nossas frontes. A fraternidade que soldou nossas vidas tornava supérfluos e irrisórios todos os laços que teríamos podido forjar. Para que, por exemplo, morarmos sob o mesmo teto se o mundo era nossa propriedade comum? E por que recear distâncias entre nós que nunca poderiam nos separar?"




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