quarta-feira, 19 de julho de 2017

Solilóquio de Amor

"Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E, no entanto, estavas dentro de mim, e eu fora, a te procurar! Minha feiura se lançava sobre toda a beleza que criaste. Estavas comigo, e eu longe de ti. Prendiam-me longe de ti coisas que nem existiriam, se não existissem em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor pôs em fuga minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e agora suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora sinto fome e sede. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama. Tarde te amei, tarde te amei".

(Santo Agostinho, As Confissões, "capítulo XXVII")

(Adaptação, "A Criação de Adão" de Michelangelo) 

Entre nós...

"‘Entre nós’, explicava-me [Sartre] utilizando o vocabulário que lhe era caro, ‘trata-se de um amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes’. Éramos de uma mesma espécie e nossa compreensão duraria tanto quanto nós mesmos, mas ela não podia suprir as riquezas efêmeras dos encontros com seres diferentes; como consentiríamos deliberadamente em ignorar a gama dos espantos, das saudades, dos remorsos, dos prazeres que éramos também capazes de sentir? Refletimos longamente sobre isso durante nossos passeios. Uma tarde, com os Nizan, fôramos ver, no Champs-Élysées, Tempestade sobre a Ásia e, depois de os termos deixado, descêramos a pé até os jardins do Carrousel. Sentamos num banco de pedra ao lado de uma das alas do Louvre. Como encosto havia uma balaustrada separada do muro por um espaço estreito: nessa gaiola, um gato miava; como se metera ali dentro? E era grande demais para sair. A noite caía e uma mulher aproximou-se com um saco de papel nas mãos: tirou de dentro restos de comida e os deu ao gato, acariciando-o com ternura. Foi nesse momento que Sartre propôs: ‘Façamos um contrato de dois anos.’ Eu podia arranjar-me em Paris durante esses dois anos e viveríamos na intimidade mais estreita possível. Depois, ele me aconselhava a solicitar, eu também, uma situação no estrangeiro. Ficaríamos separados dois ou três anos e voltaríamos a nos encontrar em algum lugar do mundo, em Atenas, por exemplo, para retomar durante um tempo mais ou menos longo uma vida mais ou menos em comum. Nunca seríamos estranhos um ao outro, nunca um de nós apelaria ao outro em vão, e nada prevaleceria sobre essa aliança; mas era preciso que não degenerasse em constrangimento, em hábito; devíamos preservá-la por todos os meios desse apodrecimento. Aquiesci. A separação que Sartre encarava não deixava de me assustar, mas esboçava-se ao longe, e eu adotara como regra não me preocupar com problemas antecipados; contudo, à medida que o medo me assaltava, eu o encarava como uma fraqueza e esforçava-me por diminui-lo; o que me ajudava é que já comprovara a solidez das palavras de Sartre. Com ele, um projeto não era conversa fiada, e sim um momento de realidade. Se me dissesse um dia: ‘Encontro-a daqui a vinte e dois meses, exatamente às dezessete horas, na Acrópole’, poderia estar certa de que o encontraria na Acrópole às dezessete horas exatamente vinte e dois meses depois. De um modo mais geral, sabia que nenhuma desgraça vinda da parte dele me ocorreria, a não ser que morresse antes de mim.



Quanto às liberdades que nos tínhamos teoricamente concedido, não se tratava em absoluto de usá-las durante o período do ‘contrato’; entendíamos entregar-nos sem reticência e sem partilha à novidade de nossa história. Fizemos outro pacto: não somente nenhum de nós nunca mentiria ao outro, como também não lhe esconderia nada.

(…)




Enfim, nenhuma máxima atemporal impõe a todos os casais uma perfeita translucidez: cabe aos interessados decidirem que gênero de acordo desejam atingir; não têm nem direitos nem deveres a priori. Na minha adolescência, eu afirmava o contrário: inclinava-me demasiado a pensar que o que valia para mim valia para todos.

Hoje, em compensação, irrito-me quando terceiros aprovam ou censuram as relações que estabelecemos, sem levar em conta a particularidade que as explica ou justifica: esses sinais gêmeos em nossas frontes. A fraternidade que soldou nossas vidas tornava supérfluos e irrisórios todos os laços que teríamos podido forjar. Para que, por exemplo, morarmos sob o mesmo teto se o mundo era nossa propriedade comum? E por que recear distâncias entre nós que nunca poderiam nos separar?"




"Deus está morto!"


125 - O insensato. - Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: "Procuro Deus! Procuro Deus!" Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, o seu grito provocou grande riso. "Ter-se-á perdido como uma criança?", dizia um. "Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?" Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. "Para onde foi Deus?", exclamou, "é o que lhes vou dizer. Matámo-lo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada vez mais noites? Não será preciso acender os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da decomposição divina?... Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob o nosso punhal; quem nos há-de limpar deste sangue? Que água nos poderá lavar? Que expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza deste acto é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dele? Nunca houve acção mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história!" O insensato calou-se depois de pronunciadas estas palavras e voltou a olhar para os seus auditores: também eles se calavam, como ele, e o fitavam com espanto. Finalmente atirou a lanterna ao chão, de tal modo que se partiu e se apagou. "Chego cedo demais", disse ele então, "o meu tempo ainda não chegou. Esse acontecimento enorme está ainda a caminho, caminha e ainda não chegou ao ouvido dos homens. O relâmpago e o raio precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam de tempo, mesmo quando foram efetuadas, para ser vistas e entendidas. Está ação ainda lhes está mais distante do que as mais distantes constelações; e foram eles contudo que a fizeram!" Conta-se ainda que este louco entrou nesse mesmo dia em diversas igrejas e entoou o seu Requiem aeternam, Deo. Expulso e interrogado teria respondido inalteravelmente a mesma coisa: "O que são estas igrejas mais do que túmulos e monumentos fúnebres de Deus?"

Christ of Saint John of the Cross – Salvador Dali