Aldous Huxley foi um escritor inglês, um dos mais marcantes
de sua época. De família abastada, recebera uma educação intelectual
privilegiada. Tendo iniciado sua carreira por volta do ano de 1916, foi em 1932
que o autor publicara sua mais brilhante e conhecida obra intitulada “Admirável
Mundo Novo”, uma distopia que previa um futuro dominado pela tecnologia, onde
as pessoas eram “obrigadas a serem felizes”, numa sociedade onde cada membro do
corpo social devia ter uma utilidade e agir sempre em nome da estabilidade
social. Foi com esta obra que o autor se tornou conhecido internacionalmente.
O intuito desta resenha é não apenas descrever a obra
supracitada, mas, sobretudo, realizar os paralelos entre o que Huxley
brilhantemente relatou em sua obra sob forma de distopia com exemplos
contemporâneos que podemos encontrar em nossa civilização ocidental, como a
questão da engenharia genética, da engenharia social, a hipnopedia como meio de
condicionamento do indivíduo, a “ditadura da felicidade” e o Soma, droga que
era disponibilizada sob a promessa de a todos os males curar. Sem mais
delongas, vamos à obra!
Brave New World, do inglês, é uma obra futurística carregada
de uma visão crítica sobre o futuro da humanidade, esta que vive sob o lema
“Comunidade, Identidade, Estabilidade”. Henry Ford (sim, o pioneiro na produção
em grande escala e divisão do trabalho) era considerado um Messias, tanto que
mesmo a história fora apagada e agora se segue uma ordem cronológica que vale a
partir de Ford, onde o autor deixa bem claro que o mundo de fato seria outro
após o fordismo. A história, portanto, ocorre no ano de 634 d.F (depois de
Ford).
A história começa no Centro de Incubação e Condicionamento,
onde se manipulam bebês de proveta, todos já predestinados a cumprir com sua
função na sociedade. Estes bebês seriam propositalmente manipulados para
nascerem com certa capacidade cognitiva e se encaixariam em um sistema de
castas, onde “se dava a luz ” a crianças estritamente para atender a uma
demanda da sociedade, como para serem trabalhadores em uma fábrica com serviço
pesado, tarefas administrativas e mesmo os escolhidos que receberão todo um
preparo e condicionamento refinado, tudo, como já vimos, em nome da
estabilidade social, em uma sociedade que sofrera de uma grande guerra (A
Guerra dos Nove Anos) e que agora mediante a este controle total das pessoas
alcançou tal estabilidade, por meio do aumento do controle governamental
centralizado. Nas palavras do próprio autor
[...] numa época de tecnologia avançada a ineficiência é o pecado contra o
Espírito Santo. Um estado totalitário verdadeiramente
eficiente seria aquele
em que o executivo todo-poderoso de chefes políticos e seu exército de
administradores controlassem uma população de escravos que
em que o executivo todo-poderoso de chefes políticos e seu exército de
administradores controlassem uma população de escravos que
não tivessem de ser coagidos porque
amariam sua servidão.
Seria por meio do condicionamento infantil e de uma ciência
completamente desenvolvida das diferenças humanas que poderiam os
administradores deste admirável mundo novo alcançar tão almejada estabilidade,
onde cada indivíduo detinha sua posição hierárquica social e econômica. Por
fim, para sacramentar tal doutrinação, deveria ser desenvolvida uma nova droga
que atuaria como substituta de narcóticos e do álcool, com promessas de aumento
da produção do prazer, sob efeitos muito menos nocivos que estes. Com este
plano em ação, uma série de mudanças ocorreria nesta sociedade, a primeira
delas é de que todos agora são felizes, pois possuem conforto e desconhecem a dor,
uma sociedade que detém uma droga (o Soma) que aliviaria qualquer angústia ou
problema e, por fim, que agora abole a família, sendo qualquer laço familiar,
como o simples fato de chamar uma mãe de “mãe” algo vergonhoso e jocoso, além de uma sociedade promíscua, onde
cada um pertence a todos e o sexo é tão popular, sendo também o casamento
algo abominado e mesmo desconhecido para muitas pessoas, estas que eram
totalmente condicionadas a viver neste admirável (ou abominável) mundo novo,
feliz e descolado. É neste ponto que poderíamos nos questionar se estaria
Huxley prevendo um futuro onde há a quebra total da tradição e a ascensão de
uma sociedade sem valores morais permanentes, o que nos permitira traçar
um paralelo entre a obra de Zygmunt Bauman acerca de seu conceito de
“Modernidade Líquida”.
É ainda no prefácio da obra que o autor nos provoca dizendo:
[...] a menos que prefiramos a descentralização e o emprego da
ciência
aplicada, não como o fim a que os seres humanos deverão
servir de meios,
mas como o meio de produzir uma raça de indivíduos
livres, teremos apenas
duas alternativas: ou diversos totalitarismos
nacionais militarizados [...]
ou então um totalitarismo supranacional
suscitado pelo caos social. É escolher.
Dando continuidade à obra, o Diretor do DIC (Centro de
Incubação e Condicionamento) apresenta o laboratório de fecundação a uma turma
de alunos, jovens curiosos quanto ao procedimento de engenharia genética que
permitiria esta estabilidade social por meio do controle das castas. Estas
castas eram subdivididas em Alfas, grupo que ocupa o mais alto grau hierárquico
na sociedade, representando as pessoas com o intelecto mais desenvolvido,
havendo ainda uma divisão entre Alfas-Mais, Menos ou MaisMais, estes que seriam
os detentores do conhecimento; Betas, pessoas com capacidade intelectiva
razoável, similar a dos Alfas, porém sua posição na sociedade requer menor
capacidade de pensamento, ou seja, possuem habilidades específicas para
realizar determinadas tarefas; Gamas, pessoas que atuariam em funções de menor
risco e funções administrativas e repetitivas; Deltas, que seriam pessoas
“produzidas” em larga escala para realizarem o trabalho servil, e, por fim, os
Épsilons, que trata, de fato, das pessoas que não sabem ler nem escrever e que
ocupariam as funções mais pesadas da sociedade, como o trabalho em fundições,
além de serem referidos como os estúpidos ou idiotas. Todas as pessoas passavam
por um processo de condicionamento, porém apenas os três grupos mais baixos da
hierarquia social, os Gamas, Deltas e Épsilons que eram formados pelo processo
conhecido como Bokanovsky, este que consistia em um processo onde geneticamente
apenas um óvulo poderia gerar até 96 gêmeos.
Tal processo se traduzia em um dos principais instrumentos
da estabilidade social, pois representava o modelo de produção em série
fordista aplicado à biologia. A ideia era padronizar toda a sociedade em nome
do equilíbrio social, porém, felizmente, o número de pessoas que poderiam ser
criadas através do processo era limitado, fato este lamentado pelos detentores
do controle.
A história segue com o Diretor juntamente com um cientista
chamado Foster descrevendo o processo de incubação e condicionamento dos
embriões e bebês e as vantagens deste processo, se gabando pelo poder de
manipular embriões e criar pessoas que poderiam se tornar tanto um Alfa como um
Épsilon , o que fosse necessário ao corpo social. O Sr. Foster faz menção ao
controle de oxigênio como forma de manipulação de um embrião de modo que ele
tenha seu desenvolvimento abaixo do normal, pois o primeiro órgão a ser afetado
pela insuficiência de oxigênio é justamente o cérebro, e o cientista finaliza
dizendo que quanto mais baixa é a casta, menos oxigênio se dá.
Em meio a todo este processo, o lema da sociedade deste
admirável mundo novo, segundo os administradores, era “amar o que se é obrigado
a fazer”, pois fazer com que as pessoas amassem seu inescapável destino social
era justamente o objetivo do condicionamento de pessoas, e aqui poderíamos
novamente fazer uma provocação: seria este o dogma/lema da contemporaneidade
pela busca da tão desejada eficiência, numa sociedade que não aceita perder
tempo e que tem por obrigação intrínseca a otimização total do tempo, uma
sociedade muitas vezes utilitarista e instrumental e que acaba por se distanciar
de sua natureza em nome desta eficiência? Ou ainda, já não estaríamos sendo
condicionados a pensar assim no modelo atual de sociedade consumista, onde
devemos ter por obrigação o dever de alcançar intermináveis objetivos (isto no
âmbito profissional de cada um de nós), para no final sermos pessoas que
cumprem com seu papel na sociedade, consumistas e que fazem a “roda girar”,
isto num processo ininterrupto e alienado? Paremos para pensar...
No capítulo II o autor nos traz a questão da abolição das
flores e do culto à natureza, em um processo de condicionamento onde crianças
relacionariam a presença de flores e da natureza em si com sensações
desconfortantes, de modo com que estas crianças passassem a evitar agora o
contato com tal cenário. Esta mesma doutrinação ocorria com os livros, pois tal
curiosidade e avidez pelo conhecimento eram evitadas neste mundo, pois as
pessoas só poderiam aprender e saber o que os administradores quisessem que
soubessem. Destarte, “as crianças cresciam com o que os psicólogos chamavam de “ódio
instintivo‟ aos livros e flores” (p. 18). Segundo o próprio Diretor, isto se
dava porque “o amor à natureza não estimulava a atividade de nenhuma fábrica”
(p. 19). Toda atividade neste mundo deveria ter um fim que fosse interessante
economicamente, e novamente podemos fazer uma reflexão quanto ao pensamento de
Huxley na obra com o que temos hoje em nossa sociedade. Abolia-se o culto à
natureza, pois não estimulava nenhum processo econômico, deste modo, acabava-se
com as flores e os campos e no lugar erguiam-se construções de modo a estimular
o consumo. Ora, não estaríamos aqui tratando da ascensão de construções de
shopping centers, onde não havendo mais campos e natureza para se contemplar,
as pessoas se reuniriam em grandes centros urbanos, agora estimulando o consumo
e fazendo “a roda girar”? Destruíram a gratuita contemplação à natureza e no
lugar nos ofereceram centros comerciais, e ao que parece temos perfeitamente comprado esta oferta e plano... “Não se pode
consumir muita coisa se se fica sentado lendo livros” (p. 33). São estes
paralelos que fazem das distopias um gênero encantador de leitura!
Outro ponto que nos faz pensar criticamente com a obra – e
teremos nesta resenha diversos pontos neste sentido – é quanto à aparente
suscitação de um conflito entre castas, primeiro pela divisão das mesmas em
trajes de cores diferentes, pois o autor faz menção diversas vezes a um certo
orgulho em se pertencer a determinada casta, como mensagens de orgulho por
pertencer a determinada casta ou críticas às demais, a exemplo, quando Lenina,
uma jovem que ainda será inserida na trama, alega “estar contente por não ser
um Gama”. Ora, somos diariamente bombardeados por informações irrelevantes e
notícias de tragédias e males realizados por determinados povos ou tribos, o
que poderia ser comparado à hipnopedia, porém contemporaneamente este trabalho
está sendo realizado (possivelmente) pela mídia, que com sua polida missão de
“apenas informar a realidade à população”, acaba por ser uma ferramenta
tendenciosa e que faz a manutenção do ódio e preconceito contra as
diversidades, reflexões que vão além da obra de Huxley e que se completa pela
magnífica obra de George Orwell intitulada “1984”, porém que fogem ao propósito
do atual trabalho.
Ainda nesta visita ao DIC, é levantada pelo Diretor a
questão da sexualidade entre as crianças, onde o mesmo diz que, por algum
motivo, brinquedos eróticos eram proibidos entre os pequenos, o que fora em
uníssono repreendido pelos estudantes presentes, pois brinquedos eróticos neste
novo mundo são considerados normais e totalmente liberados. O Diretor ainda
advertiu aos alunos dizendo que “quando não se tem o hábito da história, os
fatos relativos ao passado, em geral, parecem mesmo incríveis ou absurdos” (p.
24), e como sabemos, toda a história fora recriada, passando a valer agora
apenas o mundo do pós-fordismo. Estaria Huxley nesta passagem prevendo o
colapso moral iminente na sociedade, onde cada vez mais precocemente crianças
são apresentadas ao mundo erótico e sexual, através da mídia, da internet e da
própria arte e música?
No meio da visita, surge um homem chamado Bernard Marx, um
dos personagens principais da obra, mas que por hora é tratado sem muita
importância pelos presentes na visita. Bernard aparece de forma meio efusiva
para se dirigir ao Diretor do DIC, informando sobre a chegada do que eles
denominavam de “Sua Fordeza”, Mustafá Mond, o Administrador Residente da Europa
Ocidental, Um dos Dez Administradores Mundiais, cuja primeira mensagem à turma
fora “A história é uma farsa” (p. 25).
A história não era ensinada, pois a falta de sensibilidade e
de senso crítico é proposital. Mustafá Mond continua sua fala indagando aos
alunos se eles sabem o que significa viver “no seio familiar”, e nenhum dos
alunos soubera responder tal questão, mas apenas abanaram as cabeças. O
processo de nascimento natural era tido como um processo “vivíparo” pelas
pessoas deste admirável mundo novo, sendo totalmente abominado, e para tal,
mulheres andavam com cintos malthusianos como técnica anticonceptiva, sem
contar na existência de mulheres “neutras”, ou seja, estéreis e que estariam
livres deste “inconveniente”.
Migrando para outro cenário, surge Lenina Crowne, uma Beta e
muito atraente mulher que será muito importante ao longo da trama. Lenina
aparece entrando no banho, em uma espécie de sistema altamente desenvolvido,
onde a pessoa entra em um sistema inteligente que se encarregava de dar banho
na pessoa, secá-la e perfumá-la em instantes. Lenina inicia um diálogo com
Fanny, sua amiga, e aqui podemos já ver como eram tratados os relacionamentos
duradouros e o amor entre os casais. Lenina pergunta à sua amiga com quem ela
irá sair à noite, de um modo incomodamente natural. Sim, nesta sociedade o lema
era “cada um pertence a todos”, e laços amorosos ou compromissos sérios eram
algo completamente defasados, e se uma pessoa fosse desejada, bastava apenas
uma única pergunta: você já tem com quem acoplar hoje à noite? O simples fato
de se relacionar repetidas vezes com uma mesma pessoa já era repreendido nesta
sociedade. O romance, a fidelidade, os laços familiares, tudo isto é rechaçado,
como bem mostra as próprias palavras de Mustafá Mond aos alunos Alfa:
A família, a monogamia, o romantismo. Em toda parte o sentimento
de
exclusividade, em toda parte a concentração do interesse, uma
estreita
canalização dos impulsos e da energia [...] Mas cada um
pertence a todos.
Huxley via um mundo onde a dor, as doenças e os inconvenientes da natureza
humana teriam sido eliminados, onde agora reina apenas a felicidade e a
satisfação dos prazeres. Nas palavras do próprio Administrador, nós, os pré-
modernos, seríamos “loucos, perversos e desgraçados” (p. 29)!
Lenina era uma mulher que já estava começando a se cansar de
relacionamentos fugazes e superficiais, começando a dar indícios de que
máximas como “cada um é de todos” a incomodava, mas era sempre
repreendida por sua amiga Fanny, pois devia se “portar convenientemente”.
Bernard Marx era um Alfa-Mais e outra pessoa que demonstrava certo
desconforto com esse mundo tão isento de dores, inconvenientes e tão
facilitador . Em uma conversa entre Lenina e Fanny, sua amiga, surge a ideia
de Lenina e Bernard Marx saírem juntos, Bernard que acumulava um
sentimento de afeto por Lenina, esta que de certa forma retribuía, apesar de no
fundo também o achar uma pessoa estranha e de desconfiar de que os
rumores acerca da inclusão do Álcool em sua carga genética eram reais.
Bernard propõe a Lenina um passeio para uma Reserva de Selvagens, algo
que era bem excêntrico neste mundo, pois os ditos selvagens eram pessoas
que não aceitavam viver nesta “ditadura da felicidade” e que cultivavam ainda
alguns de nossos costumes. Todavia, um passeio a uma Reserva de
Selvagens era encarado como uma visita ao zoológico. Esta viagem irá mudar
completamente o rumo de toda a história neste Admirável Mundo Novo.
Bernard era um especialista em hipnopedia e sempre ficava intrigado quando
via as pessoas repetirem os jargões que lhes foram implantados em seus
subconscientes ou agindo em conformidade com as frases hipnopédicas,
devido ao seu espírito curioso e questionador, proveniente da pequena falha
ocorrida quando de sua criação, a inclusão de Álcool em seu pseudo-sangue.
O Alfa-Mais sempre rejeitava o Soma e era bastante cético a aforismos como
“com um centímetro cúbico se curam dez sentimentos lúgubres” (p. 36) ou “um
grama vale mais que o “ora” que se clama” (p. 36), relacionados à droga (o Soma), além de alimentar uma insegurança devido à sua baixa estatura e
massa muscular, pois os Épsilons, por exemplo, foram condicionados a
associarem a massa corporal com a superioridade social. Bernard também
era conhecido e criticado por não gostar dos jogos bastante populares e
famosos neste Admirável Mundo Novo, o que lhe rendia maus comentários,
além de ter o hábito de fazer as coisas em sua intimidade, o que era também
quase que uma heresia neste Novo Mundo.
Uma figura muito importante na obra e que vale a pena tocar antes de
adentrarmos na viagem de Bernard Marx e Lenina Crowne à Reserva dos
Selvagens é o (único) amigo de Bernard, Helmholtz Watson, este que era
também um Alfa-Mais e representava a verdadeira figura do homem adequado
a este Admirável Mundo Novo, ocupando um cargo importante na sociedade,
sendo o tipo de pessoa sociável que todo mundo almejava, tendo sido inclusive acreditado que Helmholtz tenha possuído seiscentas e quarenta mulheres num
período de apenas quatro anos! Mas apesar do total enquadramento social,
algo em que seu amigo deslocado Bernard Marx sempre desejara, Watson
sentia um vazio dentro de si e em determinado momento concluiu que todas
estas coisas bem vistas pela sociedade não passavam de coisas de secundária
importância, iniciando uma jornada de produção de rimas, que posteriormente
este iria descobrir se tratar de POESIA, que é onde entrará a figura de John, o
selvagem, o que em breve trataremos. Helmholtz dizia coisas como “você
nunca sentiu a sensação de se ter em si alguma coisa que, para se exteriorizar,
espera somente que você lhe dê a chance?” (p. 44) ou “sinto que poderia fazer
coisas bem mais importantes. Sim, e mais intensas e violentas” (p. 44), mas
este seu lado sensível sempre fora rejeitado pelas pessoas de seu meio e
encarado como perigoso pelos Administradores.
Em todas as conversas entre Bernard e Lenina o jovem Alfa-Mais era
repreendido por suas inclinações e desejos, como em ficar sozinho, em ser
livre e em não ser útil à sociedade, o que lhe rendia reprimendas por parte da
jovem Lenina como “porque você não toma uma dose de Soma quando tem
essas ideias horríveis?”
Bernard, que devido a seu cargo era um dos únicos que tinha autorização para
solicitar uma viagem para uma Reserva de Selvagens, decidiu convidar Lenina
para realizar tal passeio. Próximos a entrar na Reserva, advertira Lenina de
que lá não existiam perfumes, televisão e nem mesmo água quente, e que se
ela se julgava incapaz de lidar com tais desconfortos, que ficasse para trás,
mas Lenina sente-se ofendida e decide ir junto com Bernard. Ambos foram
advertidos quanto aos inconvenientes que possivelmente encontrariam na Reserva e sobre a orientação de ficarem sempre longe das cercas ao redor do
local, pois tocar na certa significava morte instantânea, pois “não havia meio de
escapar de uma Reserva de Selvagens” (p. 61). O Conservador, que seria
responsável por levar o casal à Reserva, lhes disse inclusive que aqueles que
nasciam na Reserva estavam destinados a morrer nela! Gravidez,
casamento, família, superstições, o culto aos antepassados e até mesmo a
presença de animais ferozes foram coisas em que o Conservador da Reserva
fez questão de relatar ao casal quanto sua existência, mas, não obstante, o
casal procedera com a viagem, e felizmente, pois isto mudará todo o rumo da
história!
Enfim, é chegada a hora. O casal finalmente chega à Reserva dos Selvagens,
chamada de Malpaís. De imediato, ambos se sentiram impactados com a
diferença de cenário, sobretudo Lenina, que se pôs a constantemente reclamar
da sujeira, da desorganização, moscas e até mesmo o mau cheiro das
pessoas, fazendo perguntas do tipo “Mas como é que podem viver assim? (P.
66), e Bernard, apesar do susto, continha um tom ainda irônico, replicando
Lenina com frases como “civilização é esterilização” (P. 66), em referência às
lições de hipnopedia de higiene elementar.
Lenina nunca tinha visto uma pessoa idosa, e ficou horrorizada ao se deparar
com pessoas “cujas secreções internas não foram mantidas ao nível da
juventude” (P. 66), ostentando, portanto, todos os traços de uma pele
engelhada . A jovem Beta sentia recusa à intimidade entre as pessoas de
Malpaís, e sentira-se extremamente incomodada ao se deparar com a cena de
duas mulheres amamentando seus bebês, o que provocou o pensamento por
parte de Bernard se não lhes teriam algo em falta justamente devido à
ausência desta figura e aproximação materna em suas vidas. O estopim deste
choque de culturas fora quando os dois presenciaram uma espécie de culto
religioso, onde um homem seguia uma trilha por onde era severamente açoitado, até que caiu, algo que era totalmente incompreensível por parte dos
civilizados, os quais não sentiam mais dores físicas e tampouco viam propósito
em sacrifícios. Neste momento, o Soma fora fortemente desejado por Lenina...
É neste momento que surge um jovem de pele branca e olhos azuis, se
lamentando, pois era ele quem devia estar naquele lugar se sacrificando,
porém devido a sua cor, as pessoas de Malpaís o rejeitaram.
Tratava-se de um ritual para que se fizesse chuva e crescesse o trigo (P. 70), e
o jovem de olhos azuis desejava estar fazendo aquele sacrifício por conta
própria, o que era extremamente incompreendido pelo casal, pois não
enxergavam o sentido na dor e no sacrifício, sobretudo por se tratar de
superstição.
O jovem se pôs a contar sua mirabolante história, pois notava que o casal era
diferente e que poderiam ter vindo do Outro Lado, história que sua mãe, Linda,
sempre costumava contar a John. Havia uma lenda de que o Diretor do Centro
de Incubação e Condicionamento, Thomas, havia viajado para esta mesma
Reserva a alguns anos atrás com uma jovem chamada Linda, e que por um
infortúnio Linda se acidentara e Thomas acabou por deixa-la abandonada em
Malpaís, acreditando que a jovem tivesse morrido. Bernard, ao ouvir o
selvagem, imediatamente reconheceu a história e se pôs a escutar
atentamente cada detalhe do que o jovem dizia, até que John resolveu levar o
casal a Linda, sua mãe, esta que apesar dos anos em Malpaís, ainda
conservava os costumes dos civilizados, nunca admitindo ser chamada de mãe
por seu filho, mas apenas de Linda.
Linda, que devido à ação do tempo se encontrava bastante debilitada e
descompensada, de chofre reconheceu o uniforme de Lenina, e lembranças
daquele admirável mundo lhe veio à mente, até que por um impulso pulou na
jovem Beta, Lenina, e se pôs a chorar, causando grande repúdio a Lenina, pois
com o tempo se fora a beleza de Linda, remanescendo hoje apenas um corpo prejudicado pelas más condições de vida, em sobrepeso e coberto de
manchas.
Os quatro continuaram a conversar e Linda passou a descrever quão horrível
fora a permanência em Malpaís neste tempo todo, como era julgada e até
mesmo agredida por se portar de maneira imoral (de acordo com as regras
daquele lugar), por ter que agora remendar suas roupas, no lugar de descartalas
e adquirir roupas novas, além do fato de ter tido um bebê como um
vivíparo, isto é, tendo concebido John, seu filho, de maneira natural. Linda dizia
como sentia falta de suas doses do Soma, e como devia se contentar com as
doses de um líquido que Pope, um rapaz que ela conheceu em Malpaís, lhe
trazia vez ou outra. A atenção voltou-se para John, e sua mãe lhes contou
breves fatos sobre a infância de John, que sempre viveu excluído e hostilizado
por aquela sociedade de “selvagens”, o que de alguma forma sempre o
impulsionava a ler mais e mais, pois quando ainda garoto John encontrou
abandonado um livro velho e pôs a se interessar pela leitura.
De súbito, Bernard teve uma grande ideia e perguntou a John se este não tinha
interesse de retornar a Londres juntamente com o casal, o que por uma
desavença com o Diretor do DIC lhe poderia ser muito útil. Afinal, aquela velha
história que crescera ouvindo a respeito de uma Beta que ficara abandonada
em uma Reserva de Selvagens era real!
“Oh, admirável mundo novo” (P.81), tais foram as palavras de John quando
terminou de ouvir atento o convite de Bernard, impressionado, pois finalmente
se tornaria realidade tudo aquilo que o jovem loiro de olhos azuis sonhara por
toda a vida.
Bernard conduzira a situação de modo a voltar com o selvagem e Linda,
fazendo contato com a Sua Fordeza, Mustafá Mond, sobre algo que talvez
fosse de seu interesse, mais especificamente, cientificamente interessante para
o Administrador. O Administrador sabia do incidente ocorrido com o embrião
designado a ser um Alfa-Mais que acabou por ter adicionado em seu pseudosangue
equivocadamente certa quantia de Álcool, passando Bernard a ser uma
espécie de experiência para Mustafá Mond, e agora este verá nesta
oportunidade a possibilidade de realizar outro experimento, inserindo o
selvagem em uma sociedade civilizada e estudando as interações entre estes
dois tipos de pessoas e seus resultados. Destarte, fora com entusiasmo que o
Administrador Geral aceitou a proposta de Bernard de retornar com Linda e seu
filho para o Admirável Mundo Novo.
Em seu retorno, Bernard teve de comparecer (e demonstrou ter gostado muito
disso) à sala do Diretor Thomas, que mesmo antes da viagem do Alfa-Mais já
demonstrava certa insatisfação e desejo de puni-lo, sob alegações de que este
seria um risco à estabilidade social, devido à sua falta de ortodoxia. O Diretor
pretendia exonerar Bernard por considera-lo um subversor devido ao seu
exemplo antifordiano, mas não sabia o que o Alfa-Mais havia o preparado. Os
boatos que sempre escutava a respeito do Diretor sobre o abandono em uma
Reserva de Selvagens era enfim real, e agora estava com ele Linda e o seu
filho, John, e Bernard, de chofre, ordena que os dois entrem quando
questionado pelo diretor se havia alguma razão para que este não executasse
seu plano de enviá-lo para a Islândia, o que causa uma grande histeria por
parte das pessoas que trabalhavam na Sala de Fecundação, pois Linda
reconhece deu Thomakin, mas não era mais a mesma, pois hoje seu corpo já
cedeu à ação do tempo, ostentando rugas e com uma silhueta muito fora dos
padrões deste Novo Mundo, além de John, ao ver seu pai, que o chama
efetivamente de “pai”, se traduzindo no estopim para o Diretor, que se retira de
tanta vergonha e acaba por pedir sua transferência por não considerar mais ser
possível trabalhar neste mesmo ambiente de trabalho após tamanha e
vergonhosa cena. Bernard, portanto, acaba por não ser exonerado e ganhará o status nesta sociedade que ele sempre desejou, mas que acabara por
corrompê-lo, que veremos mais adiante.
No retorno à civilização, Linda teve seu espaço reservado neste mundo, que
era o que ela própria apenas desejava, ficar sob o efeito do Soma até seus
últimos dias, o que fora perfeitamente providenciado, pois as pessoas do
Admirável Mundo Novo não demonstravam nenhum interesse nela, pois se
tratava apenas de um estranho e obsceno acidente, sem contar que Linda por
não ser uma selvagem de nascença, não poderia apresentar ideias originais, o
que era afinal o objetivo com a experiência com John por Mustafa Mond. John,
por sua vez, recebera o sobrenome de “Selvagem” e acabou por ser inserido
neste mundo civilizado, tendo como seu mentor o próprio Alfa-Mais, Bernard
Marx, que acabara se tornando seu confidente, pois este (o selvagem) ainda
tinha utilidade para a sociedade, diferentemente de sua mãe, cujo destino fora
sucumbir às doses de Soma até sua morte.
Era em John que todos estavam interessados, e sua proximidade com John
fizera com que a reputação do Alfa-Mais crescesse, a ponto de não mais se
comentar sobre o Álcool em seu pseudo-sangue. Bernard se tornou, enfim,
popular e mudara drasticamente desde a chegada de John, o selvagem, que
agora ocupará a posição central na obra como personagem principal.
O selvagem já em seu período inicial neste Novo Mundo já demonstrava
incompreensão para com as coisas criadas por este mundo para facilitar a vida
das pessoas, e como escrevera Marx em um de seus relatórios, o selvagem
“manifesta surpreendentemente pouca admiração ou reverência diante das
invenções da civilização” (P. 91), além de demonstrar interesse pelo que ele (o
selvagem) denomina de “alma”, o que fora relatado ao Administrador Geral.
Começa então uma jornada neste Novo Mundo pelo Selvagem, que andava
incomodado e abismado pelas coisas jamais vistas antes por ele existentes
neste mundo. John visitara laboratórios para conhecer o processo de
incubação dos embriões, conhecera centros de condicionamento hipnopédicos
e teve acesso aos meios de entretenimento das pessoas desta civilização,
como o uso liberado do Soma, os jogos sem sentido e as sessões de cinema
sensível. Por outro lado, mantinha seu senso crítico quanto à “evolução”
existente neste mundo, chegando a indagar, quando em passagem por uma
biblioteca, se as pessoas liam Shakespeare, recebendo como resposta, em
tom de negação, que “se os jovens precisassem de distração, que poderiam
encontra-la no cinema sensível, pois não estimulamos as pessoas a
procurarem qualquer tipo de distração solitária” (P. 94)
John, como já falamos, era um ávido leitor de Shakespeare e absorveu toda a
sensibilidade do escritor inglês, se portando e encarando o mundo de maneira
completamente distinta da dos ditos civilizados, tendo inclusive acabado por se
apaixonar por Lenina, mas não conseguia demonstrar seu amor, pois
tampouco se via como alguém digno de ser amado por tão bela moça, esta que
por sua vez atuava de forma contrária, pois também acabou se apaixonando
pelo selvagem e alimentava bons sentimentos e desejos por este, mas não
entendia porque o jovem a evitava e colocava empecilhos na frente dos dois,
como a necessidade de se realizar sacrifícios para provar de que era digno de
seu amor, pois fora doutrinada a ter tudo o que quisesse na hora que lhe
fosse desejável, sendo, portanto, apenas necessário ao jovem demonstrar
vontade de relacionar com ela para que isto acontecesse. Um grande imbróglio
que se estenderá por toda a trama. Quão complexos são os sentimentos e as emoções humanas, é devido a isto este plano de estabilidade social a qualquer
custo, pois o conflito entre as emoções gera instabilidade.
Certa ocasião, Lenina convidou John para assistir uma sessão de cinema
sensível em sua companhia, e o jovem acabou por aceitar. O que não sabia
era de que o filme se tratava de uma adaptação não fidedigna à obra original
de Shakespeare, o que John, por seu um ávido leitor do bardo inglês, de
chofre, percebera, causando uma grande revolta em seu interior, o que não
fora compreendido por Lenina, naturalmente, pois esta, condicionada, sequer
sabia quem era William Shakespeare. Por fim, John achou o filme horrível e
Lenina ficara ainda mais intrigada pensando em como uma pessoa que
aparentava alimentar sentimentos por ela (e vice-versa) podia dizer tamanhas
esquisitices.
A rotina de John, agora o protagonista da história, era bem corrida. Contudo, o
jovem não via muito sentido naquelas coisas em que ele deveria fazer ou
gostar de fazer, e devido a este impasse com Lenina (ao seu sentimento de
paixão), acabara caindo em um estado de tristeza e solidão, e justamente no
dia em que Bernard preparara uma grande festa, convidando grandes nomes
importantes da sociedade para conhecer John, este se recusara a aparecer na
festa, causando grande desconforto entre os convidados e, por fim, dando cabo
a tão almejada popularidade do Alfa-Mais, que se deixara corromper devido à
popularidade, tendo inclusive se distanciado de seu amigo de longa data,
Helmholtz Watson. John, o Sr. Selvagem, estava enfadado com esta rotina do
Admirável Mundo Novo e solitário devido ao sentimento de paixão que
queimava em seu coração, e manteve-se em seu quarto lendo Romeu e
Julieta.
A partir de então, Bernard voltara a ser aquele jovem de antes, de baixa
autoestima, questionador e inseguro, o que fizera com que seus laços de
amizade com o selvagem de estreitassem novamente, pois, segundo as
palavras do próprio John, “Bernard estava mais parecido com o que era em
Malpaís agora” (P. 102), demonstrando agora novamente profunda simpatia pelo Alfa-Mais, agora desinflado (e infeliz). Outra vítima da popularidade de
Bernard fora Helmholtz, mas que após este evento o jovem Alfa-Mais acabou
por se redimir com seu amigo, tendo sido bem recebido pelo mesmo, e
Helmholtz compartilhara com Bernard algumas mudanças que estavam
ocorrendo com sua pessoa, e declarou ao seu amigo que estava tendo
problemas com a Autoridade, pois havia sido severamente advertido e
repreendido por mostrar uma de suas obras (rimas) para seus alunos, obras
estas que versavam majoritariamente sobre a solidão, indo de encontro a todo
o trabalho hipnopédico realizado nas pessoas desde crianças. É neste
conflito e forma de se expressar de Watson que ele acabara por iniciar uma
sincera amizade com John, o selvagem, que também simpatizava com o lado
solitário e sacrificioso da vida.
Helmholtz Watson ouvira algumas frases recitadas por John e se demonstrou
extremamente excitado com a profundidade daquelas palavras, mas quando
John se pôs a recitar passagens de Romeu e Julieta, Helmholtz, por ser um
condicionado, acabou demonstrando uma extrema falta de sensibilidade para
com a literatura de Shakespeare, tão cara ao selvagem, fazendo com que este
ficasse completamente chateado. Ora, a ideia de um homem sucumbir à
tristeza por causa de uma mulher, uma pessoa ser obrigada a casar-se com
outra e o próprio fato de a um homem não ser possível “possuir” uma mulher
eram ideias totalmente incompreensíveis para este Alfa, que por mais
questionador que fosse, passara por diversas horas de trabalhos hipnopédicos
para que sua personalidade fosse formada. John se viu indignado e “com o gesto de alguém que retira suas pérolas da frente dos porcos, guardou-o
40 na
gaveta, que fechou a chave" (P. 105).
O romance não continuado entre Lenina e John se tornará deste ponto em
diante grande parte da história do livro. Lenina uma noite aparece no
apartamento de John e se convida a entrar, propondo uma conversa franca
entre os dois, mas a todo tempo provocando o selvagem, até que esboça uma
intimidade forçosa, pedindo que o selvagem a “beije com rudeza” (P. 111),
fazendo com que, de reação, o selvagem se veja repleto de cólera e a expulse
de casa, insultando-a por ter sido tão “oferecida”, pois era simplesmente
incompreensível e inconcebível esta facilidade e popularidade do sexo neste
Novo Mundo pelo “aluno de Shakespeare”, momento este que na trama John
pela primeira vez deu motivos para ser chamado de “selvagem”, pois em um
momento de repleta raiva apertou o braço de Lenina e pôs a chama-la de
prostituta41. Lenina, portanto, cai em profunda solidão e rejeita mesmo Henry
Foster, homem pelo qual no início da história estava apaixonada, este que
chega a crer que Lenina estivesse doente.
Por sorte, John recebera um telefonema urgente o convocando a comparecer
ao Hospital de Park Lane para Moribundos, a respeito de sua mãe, Linda, e
Lenina pôde voltar para casa. Neste momento acontece um fato curioso na
trama, pois ao ligarem para o Selvagem, não esperavam que este
comparecesse de fato ao hospital para ver sua mãe partir, mas apenas para
informar-lhe do ocorrido, mas John ignora toda a cordialidade neste momento
por parte das pessoas do hospital e arranca olhares horrorizados das pessoas
ao querer ir ao encontro de Linda, algo que era inexistente neste Novo Mundo,
a lamentação pela perda e a não aceitação da morte.
John encontrara sua mãe com um aspecto de felicidade imbecil e com um
sorriso irregular e descorado de contentamento infantil, sob a influência do
Soma e de frente para a TV', citando frases hipnopédicas, e tentava ali fazer
seu último contato íntimo com sua mãe neste momento de dor. Todavia, se
revolta com uma turma de crianças que estavam passando pelo seu
“condicionamento para a morte” que demonstra total desrespeito à passagem
de linda e completa inconveniência ao perguntar ao próprio John coisas como
“Por que ela é tão gorda assim?” (P. 116). O Selvagem se viu em fúria e
chegou a agredir um dos pequenos, até que fora repreendido pelas pessoas
responsáveis pelo programa de condicionamento, mas mediante a sua posição
ameaçadora, fez com que esvaziassem a sala, finalmente permitindo a John
seu desejado momento de paz e tranquilidade com sua mãe. John sentia
vontade de tirar sua mãe daquele sonho ilusório de prazeres, mas sabia que
era tarde, e que era chegada a hora de Linda partir, até que os olhos de Linda
se fecham e John cai em profundo desespero de joelhos junto à cama,
lamentando a perda de sua mãe.
Ao sair da sala, deixando o corpo de sua mãe já sem vida, John se viu
desolado e ao passar pelas pessoas em seu caminho, inconscientemente
empurrava as pessoas de modo a abrir seu caminho. John já se demonstrava
exausto e enfadado com a mesmice deste Admirável Mundo Novo, onde por
todos os lados se viam gêmeos e padrões estabelecidos.
Ele despertou novamente para a realidade
exterior, olhou em torno de si, reconheceu
o que estava vendo – reconheceu, com uma
desalentadora sensação de horror e repugnância
,o delírio incessantemente renovado de seus
dias e suas noites, o pesadelo da pululante
exterior, olhou em torno de si, reconheceu
o que estava vendo – reconheceu, com uma
desalentadora sensação de horror e repugnância
,o delírio incessantemente renovado de seus
dias e suas noites, o pesadelo da pululante
mesmice indistinguível. Gêmeos, gêmeos...
E assim, pôs a declarar “Como há aqui seres encantadores [...] Como é bela a
humanidade! Oh, admirável mundo novo...!” (P. 120), até que ouviu alguém
informando que distribuiria Soma para as pessoas, o que gerou um estado de
euforia por parte da população e corre-corre na busca por serem os primeiros a
receberem sua dose de Soma. John, já saturado deste mundo e por ter visto o
que a droga havia feito com Linda, em nome de sua mãe sentiu-se no dever de
acordar a multidão desta prisão. John, no final das contas, não queria que as
pessoas morressem como Linda, desejando afastá-las desta dependência e
controle. “Não tomem essa droga horrível. É veneno, é veneno” (P. 121) – Dizia
John, “Veneno para a alma, assim como para o corpo” (P. 121). O Selvagem
ingenuamente clamava por liberdade e achava que as pessoas iriam também
aderir a este sentimento de liberdade contra a disfarçada opressão neste Novo
Mundo, mas seu plano acabou dando errado e, do contrário, as pessoas
acabaram se rebelando contra o jovem, amante da poesia.
Neste momento, Bernard e Helmholtz se perguntavam por onde estaria John,
até que recebera Helmholtz uma ligação de um amigo informando sobre o
ocorrido, partindo os dois para o Hospital de Park Lane. Chegando lá, se
depararam com o Selvagem proferindo palavras como “Vocês gostam de ser
escravos? Gostam de ser bebês? Sim, bebês, choramingas e babões” (P. 122),
até que John pôs a atirar as caixas de comprimidos da droga pela janela,
causando um estado de euforia e ódio por parte da população, que queriam
agora matá-lo.
Bernard e Helmholtz se inseriram na confusão para proteger seu amigo John, e
a fúria das pessoas pela falta do Soma apenas foi interrompida em tempo de
salvar os três pelos policiais que irromperam no local, estes que lançaram mão
de diversas táticas que mesmo hoje podemos ver em casos de conflitos, como
jogar na multidão uma espécie de distração, como ocorrera com a Caixa de
Música Sintética Portátil, vir com palavras brandas e se dirigindo com tom infantil às massas e, por fim, a força bruta, quando o Estado faz uso da força
bruta exclusiva e legítima a ele, em nome da estabilidade social. Os três, por
fim, foram retirados com alguns ferimentos da sala pelos policiais, e é neste
ponto que Bernard começara a esboçar traços de covardia e de que iria trair
seus amigos, por medo do que poderia acontecer a ele, medo este já
inexistente tanto no Selvagem quanto em Watson.
Este foi um episódio de grande repercussão e que não poderia ser ignorado
pelo Administrador Mustafá Mond, que convidara os três a comparecer em seu
gabinete para uma conversa franca acerca da civilização e do futuro de cada
um. Bernard se mostrava cada vez mais nervoso e com medo do porvir,
enquanto que o Selvagem lançava olhares ao redor da sala para os livros nas
estantes, com ar de curiosidade.
Ao entrar na sala e após cumprimentar os três jovens, o Administrador
perguntou a John: “Quer dizer que não gosta muito da civilização, Sr.
Selvagem?” (P. 125), e John, que estava disposto a mentir, acabou por ser
sincero, replicando ao homem em bom tom “Não.”. Devido à sua curiosidade,
John acabara descobrindo que o Administrador Geral também havia lido
Shakespeare, e conhecedor de quão brilhante era o autor, questionou ao
Administrador o porquê das pessoas não terem acesso a leituras como esta,
quando recebeu a resposta de que livros como estes estavam proibidos, sob a
justificativa de serem antigos e belos, pois em uma sociedade que eliminara a
história, coisas antigas não faziam mais sentido (ou tinham utilidade), assim
como era prejudicial à estabilidade social as coisas belas. “Nós não queremos
que ninguém seja atraído pelas coisas antigas. Queremos que amem as novas”
(P. 126) – Dizia o Administrador, e John não entendia o motivo de abolir as
coisas belas em nome das novas, que eram tão estúpidas e horríveis, mas, de
súbito, se lembrou da reação de Helmholtz quando ouvira uma passagem de
Romeu e Julieta, e enfim compreendera um pouco sobre o que Mustafá Mond
estava falando.
“O mundo não era o mesmo de Otelo49” (P. 126) – Dizia o Administrador,
acrescentando que o mundo havia mudado e que tínhamos enfim obtido a tão
desejada estabilidade social, onde agora todos eram felizes e têm tudo o que
desejam, em segurança. E ainda:
O mundo agora é estável. As pessoas são felizes
têm o que desejam
e nunca desejam o que não podem
ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca
adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa
ignorância da paixão e da velhice; não se acham
sobrecarregadas de
pais e mãe; não têm esposas
nem filhos, nem amantes, por quem
possam sofrer
emoções violentas; são condicionadas de tal
modo
que praticamente não podem deixar de
se portar como devem. E se
por acaso
alguma coisa andar mal, há o Soma.
Por fim, conclui satirizando que o selvagem fora audacioso ao achar que os
Deltas saberiam o que significava Liberdade, sendo ainda mais petulante em
querer agora que os Épsilons compreendessem Otelo. “Nós sacrificamos a
grande arte. Temos, em seu lugar, os filmes sensíveis e o órgão de perfumes”
(P. 127), o que permite às pessoas terem sensações agradáveis.
O Selvagem reprova as palavras do Administrador, que concorda que tudo isso
parece absolutamente horrível e que declara:
a felicidade real sempre parece bastante sórdida em
comparação com as supercompensações do sofrimento.
E, por certo, a
estabilidade não é, nem de longe,
tão espetacular como a
instabilidade. E o fato de se estar
satisfeito nada tem da fascinação
de uma boa luta
contra desgraça, nada do pitoresco de um combate
contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes
da paixão ou
da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.
John insiste repudia mais ainda este Novo Mundo, onde em nome da
estabilidade social destruíra-se a liberdade do homem, pois agora não passam
de meras “pessoas úteis”, sem dignidade. A técnica Bokanovsky era a
responsável por esta desgraça, criadora de mentecaptos e pessoas totalmente
manipuláveis, onde Mustafá Mond responde: “eles são o alicerce sobre o qual
está edificado tudo o mais. São o giroscópio que estabiliza o avião-foguete do
Estado na sua rota imutável.” (P. 127)
Mustafá Mond queria fazer seu ponto quanto à necessidade da existência de
uma casta inferior para realizar o serviço pesado, como ele mesmo diz “Um
homem decantado como Alfa, condicionado como Alfa, ficaria louco se tivesse
de fazer o trabalho de um Épsilon Semi-Aleijão” (P. 128), facilmente
manipulável para agir em conformidade com a vontade do governo e
dominantes. De súbito, veio à mente de John a ideia de que se eles podem
criar grandes massas de Épsilons, por exemplo, porque então não criam todos
como Alfa-Mais? O Administrador, por fim, retrucou: “Porque não temos
nenhuma vontade de que nos cortem a cabeça. Nós acreditamos na felicidade
e na estabilidade. Uma sociedade composta de Alfas não poderia deixar de instável e infeliz” (P. 127), e declarou ser certo o que ele falava, pois mesmo
experiências já tinham sido realizadas neste sentido, como a experiência de
Chipre.
Prosseguira Mustafá Mond, dizendo: “A população ótima obedece ao modelo
do iceberg: oito nonas partes abaixo da linha de flutuação e uma nona parte
acima dela” (P. 128), onde neste sistema eram mais felizes os que viviam
abaixo da linha de flutuação que os que viviam acima dela (a pequena parcela
detentora dos privilégios), afinal, “ignorance is bliss”. Diversos testes foram
realizados, assim como questões foram levantadas acerca da obtenção do
ponto ótimo da sociedade, mesmo a cogitação da redução da jornada de
trabalho das castas inferiores, mas o que acabara por se traduzir apenas em
uma “perturbação na sociedade e um acréscimo do consumo de Soma” (P.
129). Por fim, o ponto ótimo da sociedade fora encontrado, de modo que o Administrador alega não mais ser necessário mudar, dizendo inclusive que a
própria ciência se tornara perigosa, pois “toda mudança é uma ameaça à
estabilidade, e toda descoberta da ciência pura é potencialmente subversiva”
(P. 129), devendo a própria ciência ser tradada como um inimigo possível.
Bernard Marx, que estava a escutar (já no gabinete do Administrador) o diálogo
entre o Selvagem e o Administrador, pôs a se queixar e se acovardar quando
escutou que eles estariam prestes a serem enviados para uma Ilha
abandonada, de maneira aleatória. Não aceitava o fato e o via em desespero,
mas Mustafá queria informa-lo que ele deveria encarar esta viagem como um
presente, pois iriam para um lugar povoado por pessoas que não aceitavam a
ortodoxia e acabaram desenvolvendo a consciência de sua individualidade e
liberdade para se adaptar à vida comunitária. O convite havia sido dado ao
Administrador, mas este preferiu esta vida, apesar de às vezes lamentar ter
abandonado a ciência. Afinal, fora com este modelo vigente de sociedade que
a humanidade registrou o equilíbrio mais estável de sua história.
Por fim, após este longo discurso (imprescindível em qualquer resenha que
busque trazer traços de uma distopia à realidade), Mustafá completa dizendo
que fica feliz por existirem tantas Ilhas para onde possam enviar as pessoas que não se encaixavam nesta sociedade feliz a qualquer custo, pois do
contrário, seriam obrigados a “metê-las todas na câmara de gás”.
Terminada a conversa, ficara decidido que Bernard Marx e Helmholtz Watson
seriam enviados para uma Ilha de sua escolha. Contudo, estava em discussão
ainda o futuro e a vida do Selvagem neste mundo, num diálogo agora apenas
entre os dois, John e Mustafá Mond. Continuam as indagações. Foram a arte, a
ciência e mesmo a religião suplantadas. Havia neste antigo mundo uma figura
chamada Deus, e o Administrador puxa uma sequência de livros em sua
estante para o Selvagem, como A Bíblia Sagrada, A Imitação de Cristo e As
Variedades da Experiência Religiosa, e ao ser questionado, Mustafá responde
dizendo que pelo mesmo motivo que Otelo não é disponibilizado à grande
massa, estas obras também não são, pois eram antigas, e que os homens
mudaram.
John não aceitava o fato de Deus ter sido apagado da história, e dizia: “Não
fomos nós que nos fizemos, não podemos ter a jurisdição suprema sobre nós
mesmos [...] Somos propriedade de Deus” (P. 133), mas Mustafá era
irredutível quanto a apresentar as vantagens deste Novo Mundo, sobretudo
pelo fato de todos odiarem a solidão, onde John se dá conta que não se
adaptara em nenhuma das duas sociedades, tendo enfrentado dificuldade no
enquadramento social em ambas devido ao seu modo de ser, sendo excluído
devido a sua cor em Malpaís e assediado no Novo Mundo, onde queria apenas
sossego.
O Selvagem, por fim, acaba dizendo que não suportava este mundo onde as
emoções humanas haviam sido suplantadas, e que não queria conforto, mas
“Deus, poesia, perigo autêntico, liberdade bondade, pecado. Enfim, reclamar o
direito de ser infeliz” (P. 137), e o Administrador, por sua vez, respondeu em
alto e bom tom
Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no
direito de ter
sífilis e câncer; no direito de não ter quase
nada que comer; no direito
de ter piolhos; no direito de viver
com a apreensão constante no que
poderá acontecer amanhã;
no direito de contrair a febre tifoide; no
direito de ser
torturado por dores indizíveis de toda espécie.
Onde após um curto silêncio, responde o Selvagem: “Eu os reclamo todos” (P.
137).
Encerrada a conversa entre os dois, cada um foi para seus aposentos, sendo
que Helmholtz e Bernard partiriam no dia seguinte pela manhã. Assim, estes
foram ao apartamento do Selvagem para despedirem-se. Chegando ao local,
encontraram John com um aspecto de doente, este que alegava ter se
purificado da civilização, tomando mostarda com água morna, justificando que
era assim que os índios de Malpaís faziam. E assim, pôs a se despedir de seus
dois companheiros neste mundo, esquecendo todos os inconvenientes
ocorridos, mas ficando os três felizes pela amizade e pela partida, encarada
como uma nova oportunidade. John apenas lamenta o fato de não poder ir
junto com seus amigos, pois o Administrador Geral não consentiu com seu
pedido, tudo em nome desta experiência, e ainda acrescenta: “diabos me
levem se eu continuar a servir de objeto de experiências” (P. 139), informando
aos seus amigos que partiria também no dia seguinte, não importa para qual
parte, desde que lhe seja permitido estar só!
Era difícil encontrar neste Mundo Novo um local sem luxo e conforto, desejo do
Selvagem, e o mesmo acabara por escolher um velho farol para residir (para
ser seu eremitério), e apesar do lugar não ser exatamente o que ele procurava,
no sentido de poder ter uma vida isenta de conforto onde suas conquistas
seriam unicamente fruto de seu esforço, contentou-se com o local, que se tratava de uma construção de cimento, mas sob a condição de impor a si
mesmo uma disciplina pessoal mais dura. Sua primeira noite foi de insônia e
inadaptação, mas na alvorada do dia seguinte já se sentia mais confortável
quanto ao local que escolhera, pois tinha eleito tal morada justamente devido à
vista proporcionada pelo farol, mas mesmo assim ainda se punia, pensando
coisas como “Quem era ele, para viver na presença visível de Deus? Tudo o
que merecia, como habitação, era alguma pocilga suja, algum escuro buraco
no chão” (P. 140)
Enfim, John se sentia em uma espécie de Lar e satisfeito consigo mesmo, pois
depois de tanto tempo ocioso em Londres pôde agora sentir-se útil novamente,
dedicando-se a ocupações que requeriam paciência e habilidade. Todavia, se
policiava a todo tempo, pois não fora para usufruir as coisas boas da vida ou
sentir-se plenamente vivo que ele tinha ido para sua nova morada, mas
especificamente “para escapar à contaminação da imundice da vida civilizada”
(P. 141), e era com frequência que o Selvagem tomava sua porção de água
com mostarda e mesmo se auto flagelava com um azorrague, como forma de
penitência.
Contudo, não demorou para que o seu estilo de vida e capacidade de viver de
um modo totalmente apartado e imune das boas coisas deste Novo Mundo
chamassem a atenção das pessoas, que logo começaram a assediá-lo em sua
própria casa, com aparições inconvenientes, chegando inclusive a atrair a
atenção do Rádio Horário, um jornal destinado às castas superiores, e o
Selvagem se via novamente sem a companhia de sua própria solidão. Sem
paciência, ele acaba por agredir o representante do Rádio, fato este que mais
tarde sairia na próxima edição do periódico, como: “Repórter do Rádio Horário
Recebe do Selvagem Misterioso um Pontapé no Cóccix” (P. 142), tornando-se
a manchete sensação em Londres.
Repórteres de outros periódicos não intimidados pelo ocorrido continuaram a
tentar bisbilhotar a vida de John, sendo sempre recebidos com progressiva
violência, pois não mais suportava as pessoas civilizadas com seus jargões
hipnopédicos, bem como a incredulidade em seu estilo de vida de dor e
sofrimento, pois, nas palavras dos próprios civilizados “A dor é uma ilusão” (P.143), o que chegou inclusive a causar a fúria do jovem selvagem, fazendo com
que este expulsasse as pessoas ao seu redor com uma grossa vara de
amendoeira. Esta ação proporcionou a John alguns dias de descanso, até que
um repórter insistente chamado Darwin Bonaparte ficara escondido por três
dias perto da casa do Selvagem para captar seu modo de viver e sua rotina,
sobretudo a questão da dor e do sofrimento. Esta gravação acabaria por se
tornar um filme que iria para o cinema sensível, intitulado “O Selvagem de
Surrey” podendo ser assistido por toda Europa Ocidental!
Sem saber do ocorrido, John continuava sua vida solitária e rústica, até que no
dia seguinte à aparição internacional do filme fora subitamente surpreendido
por um enxame de helicópteros. John refletia sobre a morte e questionava-se a
respeito do motivo da morte de Linda, e dizia coisas como “Para os deuses,
somos como moscas para as crianças travessas; matam-nos para se
divertirem” (P. 144).
Uma horda de pessoas invadiu o pequeno farol onde John residia em plena
solidão. O Selvagem agora era como uma espécie de celebridade cômica, e as
pessoas tinham a curiosidade de conhecer este homem de vida tão sofrida; o
Selvagem acabara sendo exposto como um animal de circo, o que despertou
sua cólera, pois tudo que ele queria era apenas ficar só consigo mesmo, sem
interferências externas, fugir da civilização, e as pessoas nunca o deixavam em
paz. Em meio a pedidos pelo “chicote”, pois as pessoas desejavam ver o
Selvagem se autoflagelando com seu azorrague, surge Lenina, deixando o
jovem completamente confuso, empalidecido, como vemos na narração do livro
tal passagem:
A jovem apoiou as duas mãos no coração, e no seu rosto
corado
como um pêssego, lindo como uma de uma boneca,
apareceu uma
expressão estranhamente incôngrua de aflição
anelante. Seus olhos
azuis pareceram dilatar-se, tornar-se
mais brilhantes; e, subitamente,
duas lágrimas rolaram-lhe
pelas faces. Em voz inaudível, falou outra vez; depois,
com um gesto vivo e apaixonado, estendeu os braços
para o Selvagem e deu um passo a frente.
O Selvagem, por sua vez, que amava a jovem, mas ainda se recordava do
episódio em seu apartamento, onde Lenina tentara uma aproximação íntima
com ele, se demonstrando completamente vulgar para os padrões do
Selvagem, se enfurece novamente e parte para cima de Lenina tentando
chicoteá-la, gritando coisas como “Cortesã! Fuinha!” (P. 146), até que Lenina é
retirada do local a tempo de não obter maior prejuízo. Mediante à fúria do
Selvagem, a multidão se viu envolvida naquele sentimento de violência e raiva,
iniciando uma briga generalizada, pois os curiosos começaram a se agredir
entre si, sob a incitação do Selvagem, que encandecido gritava “Mata! Mata!” (P. 146).
A confusão se alongou por horas, e foi apenas à noite que o último helicóptero
saíra do farol, levando as últimas pessoas, que já entorpecidas pelo Soma,
saiam aos poucos do local. O ocorrido fora relatado em todos os jornais, e nos
dia seguinte mais pessoas voltavam para ver o Selvagem, porém não o
encontraram, como de costume, prostrado em seus aposentos ou fazendo os
trabalhos domésticos ou caçando, mas sim avistaram a porta do farol
entreaberta, e não obtivendo resposta do jovem, resolveram entrar pela casa,
que se encontrava em penumbra. Após cruzarem uma escada, se depararam
com uma cena que apenas a verve literária do próprio Aldous Huxley poderia
fazer jus ao momento:
[...] Lentamente, muito lentamente, como duas
agulhas de bússola
sem presa, os pés voltaram-se para a
direita: norte, nordeste, leste,
sudeste, sul, sul-sudoeste; depois
detiveram-se e, passados alguns
segundos, recomeçaram
a girar, com a mesma lentidão, para a
esquerda.
Sul-sudoeste, sul, sudeste, leste...
E assim, o jovem “Mr. Savage”, talvez o único Ser civilizado nesta “civilização”,
amante de Shakespeare e de uma sensibilidade tão distinta que fez com que este não se adaptasse nem em seu lugar de origem, Malpaís, nem neste
Admirável Mundo Novo, que acabou por se traduzir em um “abominável mundo
novo”, pois John se desiludira completamente após sua chegada neste mundo,
pois era tudo completamente diferente do que ele sempre sonhou e ouvira de
sua mãe Linda, que era uma sociedade perfeita, pois para este, nenhuma
estabilidade social justificava a supressão da liberdade e individualidade de
cada pessoa, tirou sua vida, tendo talvez agora encontrado um lugar em que
ele pudesse, finalmente, alcançar o que queria, a completa solidão em
companhia de si!
Em uma espécie de “considerações finais”, poderíamos dizer quão atual ainda
é esta obra, haja vista o número de notas de rodapé acrescentado na resenha,
de modo a realizar as citações cujas passagens incitam reflexões, de modo a
não atrapalhar o enredo da obra.
A obra fora publicada antes da Segunda Grande Guerra e duas questões foram
brilhantemente levantadas pelo escritor inglês, a Revolução Sexual, com o
boom do crescimento do uso de meios contraceptivos, na obra como o uso de
cintos malthusianos, e a questão do crescimento do consumo de drogas,
podendo se tratar desde as substâncias entorpecentes ao o uso de
medicamentos psiquiátricos, tudo em nome do controle social. Huxley
demonstrava total desprezo pelas drogas, relatada em sua obra como o
Soma.
Algumas outras questões também merecem destaque, uma delas pode ser
suscitada quando vemos uma passagem na obra quando John, recém-chegado
à civilização, começa a aprender um pouco sobre esta nova sociedade, e em
uma aula de geografia designada para Betas-Menos, John ouvira que “uma
Reserva de Selvagens é um lugar que, devido a condições climáticas ou
geológicas desfavoráveis, ou à pobreza de recursos naturais, não compensa as
despesas necessárias para civilizá-lo” (P. 93). Ora, no campo da política podemos facilmente ver esta questão, onde “Reservas de Selvagens” são mantidas, pois não apresentam nenhuma viabilidade econômica com sua mudança, e novamente a política e o dinheiro se encontram acima da dignidade da pessoa humana, basta vermos a pobreza nos países africanos ou nos grandes genocídios realizados em nome de um fim econômico, como a própria Invasão dos EUA no Iraque em 2003, em nome da “Libertação do Iraque”, mas que cujo objetivo intrínseco era ter acesso às reservas de petróleo.
Neste Admirável Mundo Novo, o que importa no final das contas é a
manutenção das rodas em giro e a obtenção de uma sociedade estável, agora
sem necessidade de heroísmo, pois numa sociedade convenientemente
organizada, ninguém tem a oportunidade de ser nobre. John via entre os índios
alguma razão para suportarem as coisas com paciência, e com a extinção da
figura de Deus, esta razão e força para suportar a dor também acabara extinta.
Mesmo a individualidade de cada pessoa fora suprimida, numa sociedade
padronizada, onde mesmo a “fabricação” de pessoas estúpidas era
programada, pois “quanto maior é o talento de um homem, mais poder tem ele
para desviar os outros. É preferível o sacrifício de um à corrupção de muitos”
(P. 85), e assim fora extirpada a individualidade do ser humano neste Novo
Mundo, causa da inadaptabilidade do Selvagem, o único civilizado nesta
“civilização”.
Por fim, outra questão a ser suscitada separadamente nesta obra é quanto à
fragilidade da geração “Y”, que fora submetida às grandes e rapidíssimas
mudanças proporcionadas pelo boom tecnológico da pós-modernidade, uma
espécie de Admirável Mundo Novo, onde as “crianças crescem e se tornam
adultos intelectualmente e durante as horas de trabalho, mas que permanecem
criancinhas no que diz respeito aos sentimentos e ao desejo” (P. 57).
A possibilidade de transição entre o que o autor tenta mostrar ficticiamente em
uma distopia com a realidade que é a mágica deste gênero de leitura. E afinal,
após a leitura desta resenha, que possui maior foco justamente nos paralelos
entre a ficção e a realidade, já lhe seria possível dizer se nossa “civilização” de hoje está mais inclinada a ser classificada como uma Reserva de Selvagens ou
se estaríamos já vivendo em um Admirável (ou Abominável) Mundo Novo?
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is!
O brave new world,
That has such people in't!
Escrito por Raphael Condessa Figueiredo
Graduando em Direito pelo IBMEC e Filosofia pela FSB-RJ
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